A Câmara dos Deputados aprovou nesta terça-feira (370 votos a 110) o chamado PL Antifacção, que cria um novo marco legal para enfrentar facções criminosas, milícias e grupos paramilitares. A proposta endurece penas, centraliza regras hoje dispersas em várias leis e amplia o arsenal jurídico de combate ao crime organizado.
Mas o texto ainda precisa ser analisado pelo Senado, onde será relatado por Alessandro Vieira (MDB-SE), e posteriormente sancionado pelo presidente Lula antes de virar lei.
A aprovação ocorreu em meio a forte embate entre governo e oposição. O relator da proposta, Guilherme Derrite (PP-SP), secretário licenciado de Segurança Pública de São Paulo, promoveu alterações profundas na versão enviada pelo Ministério da Justiça. O Palácio do Planalto tentou reverter parte dessas mudanças, mas foi derrotado.
O que muda: os principais pontos da proposta aprovada pela Câmara1. Penas mais altas: de 20 a 40 anos (e até 66 anos para líderes)
O texto amplia drasticamente as penas para crimes associados a facções ultraviolentas:
- 20 a 40 anos para integrantes;
- até 66 anos para lideranças, em casos com agravantes.
Todos os crimes definidos no projeto passam a ser considerados hediondos. Hoje a pena para organização criminosa é de 3 a 8 anos.
2. Criação de um novo tipo penal: "organização criminosa ultraviolenta"
É uma das principais mudanças e também o maior ponto de conflito com o governo.
Atualmente o país usa a Lei de Organizações Criminosas (2013), que não diferencia níveis de violência.
O projeto de lei cria uma categoria especial para grupos "ultraviolentos", com punições mais duras e condutas mais específicas.
O governo reclama que o novo tipo penal não revoga a lei de 2013, criando duas normas paralelas, o que, de acordo com o Ministério da Justiça, pode gerar brechas jurídicas que permitam a defesa pedir enquadramento na lei mais branda.
3. Novos crimes: "novo cangaço", domínio territorial e ataques contra o Estado
O projeto tipifica condutas que antes eram enquadradas de forma dispersa no Código Penal, na Lei de Drogas e na Lei Antiterrorismo.
Entre os novos crimes e agravantes estão:
- domínio territorial por facções;
- uso de explosivos e armamento pesado;
- ataques a infraestrutura essencial;
- cooptação de crianças e adolescentes;
- uso de drones para organização criminosa.
4. Regras mais duras para progressão de pena: até 85%
O texto estabelece percentuais superiores aos dos crimes hediondos: progressão só após 70% a 85% da pena cumprida.
Não há diferenciação entre chefes e integrantes de baixa hierarquia, o que gera críticas do governo.
5. Confisco de bens mais amplo e antecipado
O projeto permite ao juiz decretar perdimento definitivo de bens ainda no inquérito, antes de denúncia, quando houver risco de dissipação.
A medida inclui:
- bloqueio e confisco de criptoativos;
- alienação antecipada;
- apreensão de empresas usadas por facções.
O governo alega que a mudança dá margem para questionamento por violação da presunção de inocência.
6. Mudança na destinação dos bens apreendidos: atrito com a PF
Hoje os recursos costumam alimentar fundos federais, como o Fundo Nacional Antidrogas (Funad) e o Fundo para Aparelhamento e Operacionalização das Atividades-fim da Polícia Federal (Funapol).
O texto aprovado na Câmara prevê a seguinte redistribuição dos recursos:
- Quando houver participação estadual, os valores vão para o fundo de segurança do estado.
- Quando houver participação da Polícia Federal, vão para o Fundo Nacional de Segurança Pública, e não mais para fundos próprios da corporação.
A PF afirma que isso descapitaliza a instituição e dificulta investigações.
7. Banco nacional de criminosos ultraviolentos
O projeto cria um banco de dados integrado entre União, estados órgãos de investigação.
8. Monitoramento audiovisual de parlatórios
O texto autoriza gravação de conversas entre presos e advogados em situações excepcionais, com ordem judicial.
O governo alega que a medida pode ferir o sigilo profissional e deve ser alvo de ações diretas de inconstitucionalidade.
9. Ação civil de perdimento sem prescrição
O projeto cria uma ação civil imprescritível para perda de bens ligados ao crime organizado, paralela ao processo penal, uma mudança estrutural no sistema de confisco.
O que ficou de fora: tentativa de equiparar facções a terrorismo
A oposição tentou inserir destaque para classificar facções como grupos terroristas. O presidente da Câmara, Hugo Motta, impediu a votação. Afirmou que a matéria era "estranha ao projeto" e se alinhou à posição do governo e de especialistas. O temor era de que a medida desse margem para eventuais tentativas de interferência internacional.
O que acontece agora
O projeto segue para o Senado, onde será relatado por Alessandro Vieira.
A escolha de um senador de perfil independente para a relatoria foi vista como uma tentativa do presidente do Senado, Davi Alcolumbre, de reduzir a disputa ideológica que marcou a Câmara, de trazer rigor técnico à revisão e de negociar ajustes com o governo.
Se o Senado alterar o texto, ele volta para a Câmara antes de seguir para sanção presidencial.
Mesmo após a aprovação expressiva, o PL Antifacção ainda tem um longo caminho legislativo e pontos sensíveis que podem mudar.
Seis versões
O Ministério da Justiça havia enviado ao Congresso um texto mais enxuto, alterando a Lei de Organizações Criminosas e prevendo penas de até 30 anos, com tratamento diferenciado para integrantes de baixa hierarquia. A nomeação de Guilherme Derrite como relator, porém, mudou o rumo da tramitação. Depois de incorporar mudanças na Lei Antiterrorismo, o deputado recuou, fez ajustes sugeridos pelo governo e manteve pontos de conflito que seguem sem consenso. O substitutivo aprovado foi a sexta versão apresentada pelo relator.
"Nós estamos aumentando a pena, criando novas tipificações de crimes, dizendo que chefes de facções criminosas agora irão direto para os presídios federais, que os seus despachos com advogados serão gravados e não terão visitas íntimas, tipificando que crimes como novo cangaço, domínio das cidades, obstrução de vias, cooptação de crianças e adolescentes por facções criminosas passarão a ter penas até maiores do que tínhamos na lei antiterrorismo", defendeu o presidente da Câmara, Hugo Motta, responsável pela indicação de Derrite à relatoria.
Já a ministra da Secretaria de Relações Institucionais, Gleisi Hoffmann, avaliou, enquanto a Câmara debatia o projeto em Plenário, que o texto representava uma "lambança legislativa", enfraquecia a atuação da Polícia Federal e dificultava o combate ao crime.